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sábado, 4 de setembro de 2010

Menina Mulher da Pele Preta

                                    
 
MENINA MULHER DA PELE PRETA
 

Meus filhos estão crescendo. À medida que eles crescem eu aprendo  coisas novas. A Letícia, por exemplo, já não é mais aquela menina rechonchudinha de outrora. Hoje ela é uma moça. Daqui a alguns poucos anos será uma mulher. Nessa trajetória de menina à mulher, há algumas histórias dignas de serem registradas.
 
Letícia, aos três anos de idade, foi comigo ao cartório registrar Filipe, seu irmão que acabara de nascer. Enquanto eu era atendido no balcão, uma jovem senhora avistou Letícia e ficou encantada com ela e disse: “Que morena linda!” Para minha completa surpresa, Letícia respondeu: “Eu sou negra”. Retrucou a senhora: “Não... você não é negra.” Minha filha insistiu: “Eu sou negra”. Tornou a senhora: “Você não é negra... Você é uma morena linda.” Pela terceira vez Letícia afirmou: “Eu sou negra”. Foi quando eu pedi licença à atendente do cartório para entrar naquela conversa e com muita serenidade e delicadeza disse: “Minha senhora, por favor, não confunda a cabeça da minha filha. Ela não está lhe dizendo que é negra?” Foi aí então que a jovem senhora, vencida pelo cansaço, se dirigiu a Letícia com um sorriso e falou: “Está bem. Você é uma negra linda.
 
Fiquei impressionado como a minha filha de apenas três anos de idade, afirmou sua identidade negra diante daquela mulher. Eu jamais esperei que algo assim pudesse acontecer! Até porque eu não ficava repetindo diariamente para Letícia “Filha, você é negra... você é negra... você é negra”. Contudo, sei que o fato de ter construído minha identidade negra de forma positiva, contribui muito para que os meus filhos possam construir a sua própria identidade e história de vida, de modo consciente, seguro e confiante em suas potencialidades.
 
Por outro lado, minha filha viveu sua primeira “crise de identidade” aos cinco anos, no dia 11 de abril de 2005. Eu estava com minha esposa e meus filhos numa conversa animada, com um grupo de casais amigos, falando de futebol. Na ocasião, eu dizia ao grupo que era vascaíno e Rossana, minha esposa, flamenguista. De repente, Letícia, pensando com os seus botões, disse algo que quase passou desapercebido: “Eu queria ser branca”. Eu ouvi a frase e dei continuidade à conversa com os amigos. Minutos depois, perguntei a minha esposa: “Você ouviu o que ela disse?” Ela não tinha ouvido, pois estava entretida com a conversa. Ao lhe falar a respeito do que Letícia havia dito, minha esposa estranhou: “Ela disse isso?”. Foi aí então que nós dois, com muito jeitinho, fomos perguntar a Letícia  por que ela queria ser branca. A resposta foi: “Eu queria ser branca como a minha mãe”. Creio que a fala da menina Letícia é rica de significados e nos proporciona boas reflexões.
 
A primeira reflexão sobre o “querer ser branca como minha mãe” (para aquela menina de cinco anos de idade), pode ser traduzida como manifestação de um desejo de identificação de gênero com a mãe/mulher, sendo parte do processo de construção da sua identidade feminina, levando em consideração a sua idade. A coisa mais natural é que aquela menininha quisesse ser como a mãe. Tanto é assim que hoje ela se tornou flamenguista como a mãe, para completa tristeza desse pai vascaíno. 
 
Vale também refletir por outro prisma. O desejo de “querer ser branca”, parece ser mais complexo do que uma simples negação da sua identidade negra. Será que aquela menina, após perceber um “mundo favoravelmente branco” a sua volta (na escola, na igreja, as bonecas, as loiras da tv, etc), não teve o desejo de fazer parte dele e “ser igual” a todos com os quais ela convivia, já que naquele contexto ser negra era “ser diferente”? Nós adultos, na maioria das vezes, achamos que as crianças não percebem as coisas e o mundo a sua volta. Ledo engano.
 
Lembro-me que em certa ocasião, a caminho de casa, na Rua Domingues de Sá, em Icaraí, por volta das 21h, eu e Letícia nos deparamos com umas quatro crianças negras catando algo para comer nas latas de lixo de um prédio. Ela observou a cena em silêncio. Após uns vinte metros de caminhada, Letícia, ainda aos cinco anos de idade, me solta a seguinte pérola: “Pai, por que as crianças negras são pobres?” Foi como se eu tivesse tomado um soco na boca do estômago.  Ela podia ter facilitado e apenas me perguntar “pai por que aquelas crianças são pobres?”
 
Recuperando o fôlego, dei uma resposta à altura da compreensão dela, para uma questão demasiadamente complexa. Fiquei surpreso com a forma como Letícia havia conseguido enxergar uma realidade social que passava desapercebida aos olhares de muitos adultos: a relação estreita entre economia e racialidade; pobreza e negritude.
 
Quem são as crianças (na sua grande maioria) que estão revirando as latas de lixo dos prédios e restaurantes? Quais são as crianças que estão nos sinais vendendo balas, que estão dormindo debaixo das marquises ou perambulando pelas ruas das cidades do nosso país? Nessas horas os institutos de pesquisas, com suas estatísticas, nos ajudam a compreender melhor essa realidade da desigualdade social através dos números.
 
Não pensem que estou radicalizando. Em certa ocasião, eu fiz o acompanhamento clínico, como psicólogo, de uma pessoa branca, loira e de olhos azuis, que viveu sua infância revirando latas de lixo de restaurantes por sua sobrevivência. Hoje quem vê a linda mulher que ela se tornou, não imagina sua história. É claro que há crianças brancas e pobres, assim como existem crianças negras que gozam de uma situação economicamente privilegiada. E faço questão de afirmar que o lugar de toda e qualquer criança (de qualquer raça, etnia, religião, ou condição social) é na escola e vivendo ao lado de sua família com amor e dignidade. No entanto, você deve concordar comigo que é muito pouco comum encontrarmos uma criança “branquinha, loirinha e de olhos azuis” a todo instante num farol de trânsito. Quando a encontramos, é exceção, não regra. Infelizmente as crianças negras já fazem parte, de forma naturalizada, dessa triste paisagem social. Ou seja, quando encontramos uma criança branca, loira, bonitinha no meio da rua pensamos: “Nossa! O que ela está fazendo aqui? Será que ela está perdida?” Ao passo que a mesma realidade vivenciada por uma criança negra, já não nos causa tanta admiração ou preocupação (salvo raras exceções), pois agimos como se aquele fosse “naturalmente o lugar dela”. Isso se dá em cada um de nós de modo inconsciente. Na maioria das vezes nós nem percebemos isso, o que é pior.
 
Os anos se passaram. Hoje minha filha está com 13 anos. Sei que à medida que o tempo passa e a Letícia cresce, sua percepção do mundo e da sociedade a sua volta crescem também: Sua percepção vai adquirindo novos contornos e seu olhar tornando-se mais reflexivo sobre si, sobre os  outros e o mundo de forma geral. Somente através das suas experiências cotidianas e tendo que lidar com as diferenças existentes na sociedade, é que Letícia compreenderá de forma mais plena o que significa ser mulher, negra, brasileira e cidadã. Assim como as implicações de tudo isso, vivendo num país como o nosso.
 
A construção da identidade de uma pessoa é um processo longo e extremamente dinâmico. Que Deus abençoe a minha menina mulher da pele preta. Que Deus abençoe as nossas meninas mulheres da pele preta.

Sérgio Fonseca